| Por Charlotte Fermum Lessa
REFLEXÃO
Lanço aqui algumas questões que certamente já passaram pela cabeça de muitos professores. Meditando eu mesma nelas, encontrei algumas respostas, com as quais você pode concordar ou não. Ei-las:
1. Sendo que os contos de fadas e as histórias fictícias costumam fazer parte do dia a dia dos nossos alunos, que proveito podemos tirar desses contos e histórias, como professores, em sala de aula?
Um dos principais objetivos dos contos de fadas dentro dos saberes da psicologia é justamente detectar os conflitos que geram angústia na criança. E, conforme Sara Paín (1996), a fantasia serve para produzir o desejo a partir do impossível. Na sala de aula, portanto, o professor tem objetivos específicos ao usar os contos de fadas.
2. Qual é, então, o objetivo da abordagem pedagógica dos contos de fadas?
Sara Paín afirma que “a máquina de fabricar pensamentos cognitivos é completamente distinta da máquina de fabricar pensamentos simbólicos ou dramáticos. É distinta porque são distintos os mecanismos, são distintas as operações e são distintos os resultados, ou seja, as categorias que os produzem” (1996, p. 25). Note como a psicóloga argentina didatiza esse conceito:
PENSAMENTO | CONHECIMENTO | DESEJO |
Inconsciente | Realidade | Fantasia |
Objetividade | Subjetividade | |
Possível | Impossível | |
Mecanismos | Mecanismos | |
Assimilação | Projeção | |
Acomodação | Identificação | |
Circularidade | Repetição | |
Inibição | Repressão | |
Esquemas sensório-motores | Esquemas | |
Representação | ||
Afeto | ||
Operações lógicas | Operações retóricas | |
Classificação | Metáfora | |
Seriação (ou sequência) | Metonímia | |
Consciente | Categorias | Categorias |
Objeto | Ego | |
Tempo | Superego | |
Espaço | Id | |
Causalidade | ||
Número |
Essas são, segundo a autora, as "estruturas do conhecimento e do desejo". O professor, apesar de estar relacionado com a motivação para o desejo de aprender, não entra nas questões mais profundas da subjetividade da criança, como o faria uma psicóloga ou psicopedagoga. Assim sendo, se o conto usado em sala de aula cumpre a função de motivar para o desejo de aprender, o professor está cumprindo seu papel.
(Imagem: JoCard)
As histórias bíblicas são excelentes substitutos. Como exemplo, vamos citar a história de Davi, que apresenta uma riqueza de aspectos conscientes e inconscientes, tanto dentro da estrutura da construção do conhecimento quanto da do desejo. (Estamos nos atendo aos aspectos da motivação para a aprendizagem; portanto, não vamos focalizar o aspecto espiritual neste momento.) Quanto à estrutura da construção do desejo, vamos apenas delinear alguns possíveis aspectos do impossível no enfoque da história de Davi. (Para acompanhar o pensamento, veja 1 Samuel 16 e 17.)
ANÁLISE DA HISTÓRIA DE DAVI
Pensamento inconsciente
1. Conhecimento
“A objetividade instaura a realidade, isto é, aquilo que nós consideramos real, que está fora de nós, cujas leis não podemos modificar. Podemos repensar, mas não podemos anular essas leis” (PAÍN, 1996, p. 21).
1.1 Realidade
Objetividade
- Família de um fazendeiro (Jessé) que tinha oito filhos.
- Davi era o caçula.
- Davi era o responsável pelo cuidado das ovelhas do pai.
Possível
- Davi continuar cuidando das ovelhas enquanto um dos irmãos mais velhos era escolhido para ser o rei de Israel.
- Davi ser considerado pelo pai incompetente e imaturo para o cargo.
- Davi ser alvo da inveja dos irmãos.
1.2 Mecanismos
Assimilação
- Como pastor de ovelhas, Davi tem que enfrentar as intempéries, o medo, a solidão, o trabalho duro (conformando-se com seu papel).
- Como músico, Davi tem que tocar harpa a fim de acalmar o rei. (Assim, entra em contato com a corte e conhece a vida nesse meio.)
Acomodação
- Davi desenvolve iniciativa, liderança, confiança em Deus, coragem, pontaria, música e poesia.
- Davi aprende a se portar como nobre muito antes de se tornar rei.
- Davi aprende a ser guerreiro muito antes de entrar para o exército do rei.
Circularidade
Suas entradas e saídas do palácio real ajudam Davi a entrar em contato com o simples e comum e novamente com o complexo e sofisticado. Isso o prepara para escolher seu próprio estilo.
Inibição
A princípio, Davi ainda não sabe como agir no novo ambiente. Está tímido e receoso. (Com o tempo vai percebendo qual a conduta mais adequada e o que deve evitar. Vai adquirindo confiança, o que o faz se sentir mais seguro.)
Esquemas sensório-motores
Davi tem tempo de admirar as belezas da natureza, compor hinos em sua harpa, treinar pontaria com sua funda e usar o corpo, a agilidade e a força física para enfrentar situações de perigo.
(Imagem: JoCard)
Classificação
Davi escolheu entre coragem e medo, ousadia e covardia, confiança e incredulidade, povo de Deus e incircuncisos, fé e presunção, mal e bem.
Seriação
Passos dados por Davi:
1. Pesquisou o ambiente da batalha.
2. Ofereceu-se para salvar a honra de Israel.
3. Recordou o cuidado de Deus por ele nos pastos de seu pai.
4. Recusou a armadura do rei, que atrapalharia seus movimentos.
5. Pegou suas próprias armas: o cajado, a funda, cinco pedras lisas do riacho e o alforje, onde pôs as pedras.
6. Aproximou-se do gigante.
7. Engrandeceu o poder de Deus.
8. Manteve o foco, percebeu o descuido e atirou a pedra em direção ao único lugar desprotegido do filisteu: a testa.
9. Derrubado o gigante, imediatamente correu para cima dele e decepou-lhe a cabeça.
2. Desejo
“O subjetivo se instaura na irregularidade, se constitui na esfera do desejo e é o que nos diferencia como pessoa singular. O desejo é algo que falta; não existe na realidade. Para que haja desejo tem de haver falta. Assim, o desejo se instaura em uma irrealidade. A realidade não é somente a realidade deste momento, mas também a realidade do que é possível. Portanto, o pensamento é o pensamento do que eu projeto como possível, dentro da realidade. Na ordem do desejo, ao contrário, o que se pensa é o impossível" (PAÍN, 1996, p. 21).
2.1 Fantasia
Impossível
O caçula ser escolhido por Deus para ser o próximo rei de Israel.
Um simples pastor de ovelhas adolescente ser chamado para cantar para o rei.
Um garoto de 17 anos vencer um urso e um leão.
Um garoto derrotar um gigante amedrontador.
II. Pensamento consciente
“Os mecanismos e as operações servem para criar categorias de pensamento. As categorias do pensamento objetivo são: objeto, tempo, espaço, causalidade, número” (PAÍN, 1996, p. 54).
1. Conhecimento
1.1 Categorias
Objeto
Derrotar o filisteu, confiando no poder de Deus. Davi sabia o que queria.
Tempo
Davi rejeitou a armadura real, que atrapalhava sua movimentação, o que o faria perder tempo e o foco, e foi ágil no uso da funda. Percebeu exatamente o momento de lançar a pedra.
Espaço
Davi calculou exatamente uma distância segura para evitar risco desnecessário e, ao mesmo tempo, acertar o alvo – a testa do gigante.
Causalidade
Davi não se conduziu impulsivamente. Sabia por que estava lá: tinha consciência de que não poderia permitir que aquele filisteu afrontasse a honra de Deus. Tinha uma percepção global da realidade e só avançou depois de traçar estratégias baseado na hipótese de que sua experiência o ajudaria.
Número
Calculou a possibilidade de erro. Pegou cinco pedras no ribeiro que o separava do inimigo. Acertou na primeira tentativa.
(Imagem: JoCard)
Pudemos ter uma noção dos atos inconscientes e conscientes de Davi, os quais o levaram ao sucesso. Como tudo isso se relaciona com o desejo de aprender?
1. Davi aceitou sua realidade.
2. Davi passou pelos duros processos da aquisição do conhecimento.
3. No momento da demanda, Davi desejou o impossível.
Quando uma criança não sente desejo de aprender, algo está errado. O professor, ao contar histórias como as de Davi, pode mostrar a ela que é possível atingir o impossível (aprender), se ela desejar realmente, como Davi desejou. Isso não precisa ser dito explicitamente. A criança acabará inferindo por si mesma. Peça sabedoria "a Deus, que a todos dá liberalmente” (Tiago 1:5, RA).
ATIVIDADES SUGERIDAS
Estas atividades devem ser feitas sem que se explique sua intenção, com a participação de todos os membros da classe, inclusive da(s) criança(s) que se quer(em) recuperar.
1. Dramatização
Dramatizar as partes que mais se encaixam no perfil inseguro da criança. O aspecto da objetividade pode trazer à tona a subjetividade, trazendo seus conflitos à consciência, o que ajudará a criança a lidar com eles.
Depois da dramatização, formar um círculo pedindo que cada criança fale sobre como se sentiu durante o processo. A devolutiva do professor deve ser concisa e sutil, jamais expondo a criança em questão, sempre falando ao grupo.
Tempo da dramatização: 10 ou 15 minutos no máximo.
Tempo da dinâmica: 40 minutos ou mais, para que todos possam falar.
O professor deve fazer anotações referentes às participações, principalmente das crianças com problemas, e depois encaminhá-las para a psicóloga da escola ou psicopedagoga.
2. Desenho
Depois de contar a história, pedir que as crianças façam um desenho daquilo que mais as impressionou. Pedir que elas falem sobre o desenho e expliquem porque aquele aspecto as impressionou. (Valorizar o que cada criança diz, mesmo que seja muito pouco.)
Os detalhes mais significativos devem ser anotados e encaminhados sigilosamente para a psicóloga escolar ou psicopedagoga.
3. História escrita ou recontada
Depois de contar a história, pedir que as crianças a recontem, escrevendo-a. Caso a criança não consiga escrever, pedir que ela se aproxime e conte sua versão só para o professor ouvir.
Os detalhes mais significativos devem ser anotados e encaminhados sigilosamente para a psicóloga escolar ou psicopedagoga.
OUTRAS HISTÓRIAS BÍBLICAS
Outras histórias próprias para esse fim são as de Sansão, José e Daniel. Todas apresentam a aprendizagem e a superação como algo desejável além de situações impossíveis.
Boa sorte e até nosso próximo encontro!
Referência bibliográfica
PAÍN, Sara. Subjetividade/objetividade – relações entre desejo e conhecimento. São Paulo: Cevec, 1996.